Um final suficientemente bom

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Pego-me refletindo acerca de finais de obras audiovisuais e literárias, e nossas expectativas acerca de como seria um final apropriado para tais. Em tempo que o maior conselho para uma jovem escritora será sempre "evite clichês", pergunto-me sobre a nossa sede por histórias que nos transponham de nossos limiares cotidianos e nos jogue de cara numa grande explosão orgástica. Literal e metaforicamente. O que quero dizer é que existe um paradoxo posto aqui: ao mesmo tempo em que exigimos histórias mais autênticas, somos devoradores ávidos dos nossos piores clichês favoritos. Não apenas os exigimos, mas também os construímos. No sentido de que, se não fossem necessários, a maioria das obras lançadas nas últimas décadas não estariam transbordadas dos nossos desejos. Sobretudo quando o assunto é o desfecho da história.

É só olharmos para os filmes de maior bilheteria dos últimos anos, assim como as ondas literárias que lançam centenas de livros sobre uma mesma temática.

Nos filmes, penso logo sobre a ascensão de histórias de heróis, com destaque para Wonder Woman. Esse filme em específico seguia incrível até que um vilão (in)esperado surge para criar uma das sequências mais desnecessária que já tive o desprazer de assistir. Entendo a necessidade de trazer à tona a figura física do Deus da Guerra, em vista de que, desde o começo do longa, ele era constantemente citado como uma ameaça iminente. E seria estranho não o vermos confrontando a nossa heroína. Contudo, Wonder Woman, até essa cena, estava construindo um filme complexo que se propunha a trazer à tona uma contradição elementar do ser humano: nós temos recursos diversos, inclusive nosso próprio discurso, que podem ser utilizados para destruir ou para construir possibilidades de vidas melhores, não somente numa perspectiva individual, mas sobretudo numa condição coletiva que cria redes de ódio ou rede de resistência. E cada um de nós é convidado a fazer essa escolha. A batalha de Diana era iminentemente um conflito ético-político que todos nós enfrentamos. Depois de ver tamanha destruição e violência que as pessoas são capazes de promover, ao invés de virar às costas à humanidade e recusar-se a enfrentar tais problemática, Diana decide que existe algo em nós - e nela mesma - que é passível de salvação, justamente porque existe a potência para construção de caminhos outros que nos levem em direção à solidariedade, à justiça, ao amor e à união. Compreender isto, em tempos de Trump, de ascensão da extrema direita fascista ao redor do globo, da onda de conservadorismo que legitima a morte de jovens negros, mulheres e lgbts no nosso país, não é algo fácil.

E o filme, ao invés de ter terminado com essa batalha justa, joga-nos para o centro de uma épica luta entre o Deus da Guerra e Diana, com direito a raios, terremotos, fogo, explosões e todos aqueles artifícios que nos fazem pular em delírio da cadeira. E, novamente, a causa de todo o mal foi personificado na figura de uma pessoa particular, Ares, que planejou maliciosamente uma forma de destruir a humanidade. Como se uma força externa, maligna por essência, um monstro, fosse necessária para construir planos e "coagir" as pessoas a adotarem o propósito de se auto-aniquilarem.

Assim, o desfecho terrivelmente emotivo de Wonder Woman é ignorado em nome de alguma ação. Mas é isso o que queremos: cenas de ação cada vez mais absurda, repletas de explosivos, arma, sangue e muita violência. Um final incrível, bombástico! Se não usarem bombas, sempre podem trazer um plot twist que nos faz ter uma nova visão surreal acerca do filme que estávamos assistindo. Mesmo fora do circuito hollywoodiano de mega-produções, nosso desejo de sermos surpreendidos e termos uma experiência inigualável se mostra presente. Mesmo os filmes que não são classificados como ação ou aventura, estão acompanhados de reviravoltas delirantes, que nos deixam chocados, perplexos e estasiados. 




Não estou dizendo que usar desses dispositivos de roteiro tornem uma produção ruim ou preguiçosa, estou aqui querendo levantar uma reflexão acerca das nossas demandas particulares e coletivas. Quando vemos ou ouvimos alguém comentando que filme tal foi ruim, porque teve um final clichê, esse final geralmente é associado com desfechos em que todos os personagens terminam suas histórias felizes, vivos e convenientemente enlaçados num relacionamento digno de contos de fadas. E quando vemos ou ouvimos alguém comentando que filme tal foi bom, porque teve um final inesperado e "realista", esses adjetivos se referenciam à morte de algum personagem, ou à separação de determinado casal, ou a certa descoberta escandalosa nos últimos minutos, ou a um show de explosão e pancadaria.

Esses elementos, muitas vezes, são utilizados não para proporcionar uma conclusão à narrativa, mas para chocar, manter a plateia empolgada. E garantir o orgasmo visual. Numa sociedade extremamente consumista, até os projetos audiovisuais que consumimos precisam estar revestidos em excessos. Excessos de cenas de batalha. Excessos de uma jornada do herói que se repete ad infinitum. Excessos de romances que surgem de uma troca de olhar, passam por rápidos diálogos inspiradores e levam ao clímax sexual. Porque toda história de amor precisa também levar a um orgasmo. Excessos de trajetórias de amores heteroafetivas. Excessos de mortes na tela. Excessos de violência parcamente justificada. Excessos de frases de efeitos, personagens estupidamente bonitos e essencialmente bons. Ou relativamente bons. Excessos de desfechos arrebatadores.

Parece que os pequenos finais foram esquecidos. Daqueles que não necessariamente precisam nos dizer algo, porque eles falam muito mais acerca das trajetórias das personagens do que das nossas demandas. E cito aqui o final de The Dreamers, como exemplo. Inclusive spoiler para aqueles mais sensíveis à causa. A cena final do filme mostra Mathew escolhendo seguir um caminho distinto dos irmãos Isabelle e Theo. Os momentos em que eles passaram juntos foram importantes, emocionantes e regados de filosofia e jovialidade insurgentes aos processos históricos da época, e de posicionamentos ético-políticos distintos por parte dos irmãos franceses e do estadunidense Mathew. Em seus diálogo, coexistem discursos de uma época sobre qual seria a maneira mais coerente e ética de resistir à violência. Por isso, nada mais simbólico que o ato final, em que Matthew não se despede dos amigos, mas se distancia deles com um olhar, após uma discussão acerca do uso de pedras e coqueteis molotov para combater o avanço de policiais armados. Enquanto Isabelle e Theo vão para as barricadas de Paris, Mathew desaparece na cena. E o destino de ambos é incerto, não nos diz respeito.

(Se imigrantes são deportador, se estudantes apanham, nós deveríamos fazer nada?)

E nem me deixem começar a falar sobre The Handmaid's Tale... Alguns podem ter lido a sequência final como uma espécie de plot twist. Pelo contrário, a série inteira é construída de tal forma a nos levar junto com a protagonista para aquela conclusão. E essa conclusão não é sobre o que gostaríamos que acontecesse nem sobre o que é mais justo para as personagem, não foram nossas demandas e nossos desejos que construíram a possibilidade desse desfecho. Não. Foi a própria Offred que tomou o controle de seu destino e nos levou para o único final possível para ela. Opondo-se à ditadura em que fora obrigada a viver, mesmo com o risco de perder a vida. E o ato final foi resultado de todos os pequenos atos de resistência somados ao longo da narrativa.

Talvez denominar de pequeno final a sequência de encerramento de The Handmaid's Tale não seja justo, pois nada teve de pequeno nem de pacato. Talvez fosse mais justo dizer que este foi um final suficientemente bom. Brincadeiras a parte com o termo de Winnicott, penso que é disto que sinto falta quando vou ao cinema e saio novamente decepcionada ou quando começo uma série só para vê-la caminhando para conclusões cada vez mais mirabolantes e surreais. Na maioria das vezes, eu só gostaria de me deleitar com um final suficiente bom para encerrar a jornada das personagens. Final este resultante de uma série de eventos elaborados para levar protagonistas a um conflito derradeiro. Conflito este que será definido pelas suas escolhas. Pelas novas pessoas em que se transformaram ao longo de suas jornadas. E não por demandas de êxtase por parte do público.

Esse texto se aproxima de seu final iminente também, e você deve estar se perguntando (ou não) sobre a minha opinião dos desfechos de obras literárias contemporâneas. Bem, esse será o assunto para outro texto. Até em breve!

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