Caim - José Saramago
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Minha avaliação: 94/100
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Se fosse necessário
explicar “Caim” a alguém, eu diria somente: É o embate eterno entre a fé e a
razão.
Em “Caim”, José Saramago
faz mais que uma releitura da história bíblica de caim. Aliás, ele limita cerca
de três ou quatro páginas para narrar o surgimento do desafeto entre caim e seu
irmão abel e o consequente assassinato deste. Neste momento, deus (em
minúsculo, como Saramago escreveu) surge diante de caim com toda uma pompa
exacerbada de artista em seu momento final e acusa-o de seu crime. Contudo, caim
o rebate, afirmando que deus é tão culpado quanto ele. Tudo que caim queria era
a sua aprovação, no entanto este mesmo deus ignorou suas oferendas em
preferência as do irmão Abel, que se gabava de ser o escolhido do senhor.
Após discutirem, sem aparente
motivo, deus o grava com a marca que o protegerá de ser assassinado e o condena
a vagar pela Terra, sem conhecer outro lar, até o fim de seus dias. A partir
desse momento, caim começa uma jornada através do tempo, pulando de um presente futuro a outro, passando pelas
principais passagens bíblicas do antigo testamento, de forma a conhecer a "verdadeira face" do deus dos homens.
Então,
o que eu achei? O livro é maravilhoso. Ele levanta
várias questões acerca da destruição tanto pessoal quanto social da fé cega em
uma entidade que julgamos ser boa e justa.
“A história dos homens é a história dos seus desentendimentos com deus, nem ele nos entende a nós, nem nós o entendemos a ele.”
O Saramago escolheu
usar-se do humor irônico para dar leveza ao tema complexo da obra. Ele narra
certas cenas de uma forma que é impossível não se pegar rindo. Por exemplo,
adorei uma das cenas no começo do livro, em que o senhor deus percebeu que
havia algo de errado com adão e eva, pois eles não eram capazes de se comunicar
de forma satisfatória, ao compreender o problema, enfia-lhes a língua pela
boca. Nesse momento, pela primeira vez, adão virou-se a eva e disse “Vamos para
a cama”.
Além disso, o escritor
racionalizou as próprias ações divinas, que, ao invés de serem advindas de um
poder superior, são embaçados em conceitos puramente científicos. Há uma cena,
por exemplo, em que josué pede a deus que pare a trajetória do sol por alguns
instantes para que seus inimigos não se escondam. Deus chama-o para uma
conversa particular e explica-o o motivo pelo qual não pode parar o sol,
terminando por dissertar sobre a teoria heliocêntrica e por admitir que existem
coisas que não é capaz de controlar, como o tempo, uma entidade à parte, que
nem ele próprio compreende.
Como é de costume nas
obras do Saramago, a história é cruel. Mesmo o amor é descrito sem a
corriqueira pluma enaltecedora e bela. Em “Caim”, o mais puro amor é descrito
numa fala em que lilith considera que, se fosse necessário, receberia nas suas
mãos as fezes de caim.
Ainda é levantado um
sério questionamento sobre a existência de uma cumplicidade entre deus e o
diabo, numa cena em que aquele permite que este moleste job com o intuito de
testar a sua fé. O coitado perde a família inteira, todos os seus animais, que
eram a sua fonte de riqueza, perde, inclusive, a saúde, tendo o corpo revestido
por feridas horríveis.
(SPOILER ON)
Quando li a última
página do livro, admito que fiquei sem saber o que pensar sobre aquele final.
Li várias resenhas, discordo de algumas opiniões, concordo com outras. Algumas
pessoas acham que o final é a síntese do próprio debate interno de Saramago com
deus, aquele tenta negar este, porém se encontra, inevitavelmente, em um beco
sem saída, como Caim – a única alternativa que lhe resta é continuar a discutir
com deus, na tentativa de anular a sua influência sobre o “eu’. O próprio caim
admite terem sido, cada um de seus assassinatos, uma tentativa de matar a deus.
Porém, com essa afirmação,
julgo que o objetiva analisar o confronto entre a razão e a fé, não apenas os
conflitos pessoais de Saramago. A razão, aqui, é representada por caim, o único
homem que questiona as ações e que tenta refutar o caráter benevolente de deus.
A fé, logo, é o deus que age de forma narcisista e imprudente, demandado ser
idolatrado por todos; ele é a própria lei universal, o que significa que está
isento de ser julgado pela “moral” humana.
(SPOILER OFF)
Uma coisa que está me
deixando inquieta é o significado do homem que puxa as duas ovelhas, o que se
encontra diversas vezes com caim ao longo de sua jornada.. Não tenho certeza
sobre o seu significado, mas acho que ele é representação do tempo.
Provavelmente, estou a falar abobrinhas. Mas, para mim, faz sentido – veja, ele
perambula sem rumo na terra, encontrando-se sempre nos momentos em que caim
passa por uma profunda mudança em sua vida, e ele leva esse fardo de carregar
duas ovelhas e de impedi-las que comam o baraço, pois, no dia em que o fizeram,
ele morrerá. No entato, o velho também pode representar o elo capaz de manter a
harmonia entre duas coisas distintas, como a bondade e a maldade, a fé e a razão;
a sua sina seria uma metáfora da tentativa do ser humano de não se transformar
completamente em uma coisa e fechar os olhos para outras perspectivas, mas
manter a imparcialidade de suas ações.
“Os desígnios de deus são inescrutáveis, nem nós, anjos, podemos penetrar no seu pensamento, Estou cansado da lengalenga de que os desígnios do senhor são inescrutáveis, respondeu caim, deus deveria ser transparente e límpido como cristal em lugar dessa contínua assombração, deste constante medo, enfim, deus não nos ama, Foi ele quem te deu a vida, A vida deram-ma meu pai e minha mãe, juntaram carne à carne e eu nasci, não consta que deus estivesse presente no acto, Deus está em todo lado, Sobretudo quando manda matar, uma só criança das que morreram feitas tições em sodoma bastaria para o condenar sem remissão, mas a justiça, para deus, é uma palavra vã (…)”
Eu prometi a mim
mesma que faria uma resenha curta, ops!, tarde demais. Para quem chegou até
aqui e está se perguntando se eu sou lesada por deixado todos os nomes próprios
em minúsculo, a resposta é: Eu sou um pouco avoada sim, mas deixei os nomes
dessa forma porque no livro acontece o mesmo. Algo bastante interessante,
aliás. Ao invés de escrever o nome próprio da forma usual, o autor rompe com
toda a “mistificação” das personagens e, a partir disso, explora novas possibilidades.
Para
quem eu recomendo o livro? Eu recomendo o livro a qualquer
pessoa, seja cristã, ateísta, muçulmana, seja lá o que você for! Porém, é
necessário mergulhar de mente aberta, sem preconceito. Não é uma leitura fácil,
é um livro cruel, com situações horrendas, com sexo (implícito, gente), com
violência e com sugestões de incesto!
Se você já leu, deixe a
sua opinião sobre o livro e sobre os meus comentários. Será que a minha dedução
acerca do velho e de suas ovelhas realmente tem cabimento lógico? Não sei. Se
tiver uma opinião diferente, diga-me, quero muito entendê-lo, sinto que não
compreenderei realmente o livro, se não descobrir a sua função nele. Pois é,
estou bastante obcecada nele, mais do quem no livro em si.
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